Valor Econômico - 07/07/2014
A cooperação internacional por meio do intercâmbio de informações entre administrações tributárias tem se revelado um poderoso instrumento para se alcançar maior cumprimento das obrigações tributárias e também para a coerção à evasão fiscal e aos planejamentos tributários agressivos.
Os contribuintes, os órgãos da administração pública e as instituições financeiras irradiam um enorme fluxo de informações que alimenta e atualiza os bancos de dados das administrações tributárias em todo o mundo. Além disso, os recursos tecnológicos também permitem constantes inovações nas formas de controle e tratamento das informações dos contribuintes.
Conquanto no Brasil o intercâmbio de informações tributárias tenha sua moldura regulatória fundamentada na Constituição Federal, no CTN e nos instrumentos internacionais de cooperação celebrados pelo país, na prática a Receita Federal utiliza-se do “Manual de Troca de Informações com o Exterior”, editado pela portaria nº 001/2008. O documento foi organizado para fins de orientação e consulta dos agentes fiscais em relação aos mecanismos e procedimentos adotados para a realização do intercâmbio de informações com administrações tributárias estrangeiras.
O que intriga é a Receita esconder dos contribuintes seus direitos no âmbito da troca internacional de informações
O documento da Receita Federal do Brasil (RFB) foi elaborado com base em um modelo livremente disponível na internet proposto pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nos Estados Unidos, o “Internal Revenue Service” também dispõe de documento de mesma natureza, um Manual de Troca de Informações com o Exterior, para orientar a ação de seus agentes fiscais. No entanto, ao contrário da RFB, o documento da administração tributária americana encontra-se disponibilizado em seu sítio virtual.
Recentemente, por meio de um pedido baseado na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), solicitou-se acesso ao Manual da RFB, uma vez que se trata de instrumento geral e abstrato da administração pública e, portanto, sujeito à publicidade. O acesso foi negado, sob a afirmação de que o pedido de acesso seria desproporcional e desarrazoado, e posteriormente, em recurso interposto, sob o argumento de que o documento teria sido classificado como reservado pela Coordenação-Geral de Relações Internacionais (Corin), porque conteria informações imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado, que comprometeriam “atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações”. A decisão denegatória foi chancelada pelo Secretário da Receita Federal do Brasil que reiterou o sigilo do documento.
Recorreu-se, então, à Controladoria-Geral da União (CGU) com a finalidade de obter a desclassificação do Manual de Troca de Informações com o Exterior como documento de natureza reservada. A CGU determinou que fosse dado acesso à parte não sigilosa do documento por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo, conforme determina a Lei nº 12.527/2011. A decisão da CGU baseou-se no fato de a RFB solicitar a classificação do manual como sigiloso após a realização do pedido de acesso ao documento. A competência recursal da CGU revelou-se fundamental para que se alcançasse acesso parcial à informação pública e também estabeleceu um importante precedente impedindo que a RFB faça classificações “ad hoc” e “à la carte”, apenas quando provocada, elastecendo o prazo de sigilo de documentos públicos.
No derradeiro capítulo dessa batalha, após percurso de nove meses, a RFB cumpriu a decisão da CGU, encaminhando uma cópia do documento com a supressão de algumas partes sob a justificativa de sigilo. Uma das partes suprimidas é justamente o capítulo referente às “garantias e direitos processuais dos contribuintes”.
O intercâmbio de informações é mecanismo concebido, modelado e estruturado para servir aos interesses das administrações tributárias como instrumento garantidor de eficácia da lei tributária interna em um cenário de operações financeiras e comerciais globais. Se não se deve menosprezar o interesse público na arrecadação de tributos, o mesmo deve ser dito dos direitos constitucionalmente garantidos aos contribuintes envolvidos nesse intercâmbio.
Nada menos republicano. De um lado, o poder dado à RFB para trocar informações no cenário internacional deriva diretamente do povo e em seu interesse deve ser exercido. Esse “povo” certamente inclui os contribuintes, que têm evidente direto de saber como está sendo gerido o poder conferido a todos e quaisquer órgãos públicos. De outro, as garantias e direitos processuais, como refere o capítulo, é “dos” contribuintes, no sentido de serem seus titulares. De que adianta atribuir direitos e garantias se seus titulares não os conhecem?
Mas o que é verdadeiramente intrigante é a motivação da RFB para esconder dos contribuintes seus direitos no âmbito da troca internacional de informações. Se a RFB anda trocando informações tributárias com outros países, o que justificaria a atitude de não revelar aos cidadãos brasileiros seus direitos e garantias nesses procedimentos?
A transparência é um conceito de mão dupla. O aumento do poder fiscalizatório deve se refletir também na respectiva observância dos direitos dos fiscalizados. Como a transparência fiscal internacional envolve concretamente informações relativas aos contribuintes, estes são parte necessariamente interessada na relação entre dois Estados. Se é interesse público combater planejamentos tributários agressivos e à evasão fiscal, também o é o asseguramento da proteção dos direitos e garantias constitucionais dos contribuintes, destinatários finais de toda e qualquer atuação dos órgãos públicos.
Heloisa Estellita e Frederico Silva Bastos são, respectivamente, professora da Fundação Getúlio Vargas (Direito-GV) e advogado da área tributária do escritório Perlman Vidigal Godoy
A cooperação internacional por meio do intercâmbio de informações entre administrações tributárias tem se revelado um poderoso instrumento para se alcançar maior cumprimento das obrigações tributárias e também para a coerção à evasão fiscal e aos planejamentos tributários agressivos.
Os contribuintes, os órgãos da administração pública e as instituições financeiras irradiam um enorme fluxo de informações que alimenta e atualiza os bancos de dados das administrações tributárias em todo o mundo. Além disso, os recursos tecnológicos também permitem constantes inovações nas formas de controle e tratamento das informações dos contribuintes.
Conquanto no Brasil o intercâmbio de informações tributárias tenha sua moldura regulatória fundamentada na Constituição Federal, no CTN e nos instrumentos internacionais de cooperação celebrados pelo país, na prática a Receita Federal utiliza-se do “Manual de Troca de Informações com o Exterior”, editado pela portaria nº 001/2008. O documento foi organizado para fins de orientação e consulta dos agentes fiscais em relação aos mecanismos e procedimentos adotados para a realização do intercâmbio de informações com administrações tributárias estrangeiras.
O que intriga é a Receita esconder dos contribuintes seus direitos no âmbito da troca internacional de informações
O documento da Receita Federal do Brasil (RFB) foi elaborado com base em um modelo livremente disponível na internet proposto pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nos Estados Unidos, o “Internal Revenue Service” também dispõe de documento de mesma natureza, um Manual de Troca de Informações com o Exterior, para orientar a ação de seus agentes fiscais. No entanto, ao contrário da RFB, o documento da administração tributária americana encontra-se disponibilizado em seu sítio virtual.
Recentemente, por meio de um pedido baseado na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), solicitou-se acesso ao Manual da RFB, uma vez que se trata de instrumento geral e abstrato da administração pública e, portanto, sujeito à publicidade. O acesso foi negado, sob a afirmação de que o pedido de acesso seria desproporcional e desarrazoado, e posteriormente, em recurso interposto, sob o argumento de que o documento teria sido classificado como reservado pela Coordenação-Geral de Relações Internacionais (Corin), porque conteria informações imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado, que comprometeriam “atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações”. A decisão denegatória foi chancelada pelo Secretário da Receita Federal do Brasil que reiterou o sigilo do documento.
Recorreu-se, então, à Controladoria-Geral da União (CGU) com a finalidade de obter a desclassificação do Manual de Troca de Informações com o Exterior como documento de natureza reservada. A CGU determinou que fosse dado acesso à parte não sigilosa do documento por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo, conforme determina a Lei nº 12.527/2011. A decisão da CGU baseou-se no fato de a RFB solicitar a classificação do manual como sigiloso após a realização do pedido de acesso ao documento. A competência recursal da CGU revelou-se fundamental para que se alcançasse acesso parcial à informação pública e também estabeleceu um importante precedente impedindo que a RFB faça classificações “ad hoc” e “à la carte”, apenas quando provocada, elastecendo o prazo de sigilo de documentos públicos.
No derradeiro capítulo dessa batalha, após percurso de nove meses, a RFB cumpriu a decisão da CGU, encaminhando uma cópia do documento com a supressão de algumas partes sob a justificativa de sigilo. Uma das partes suprimidas é justamente o capítulo referente às “garantias e direitos processuais dos contribuintes”.
O intercâmbio de informações é mecanismo concebido, modelado e estruturado para servir aos interesses das administrações tributárias como instrumento garantidor de eficácia da lei tributária interna em um cenário de operações financeiras e comerciais globais. Se não se deve menosprezar o interesse público na arrecadação de tributos, o mesmo deve ser dito dos direitos constitucionalmente garantidos aos contribuintes envolvidos nesse intercâmbio.
Nada menos republicano. De um lado, o poder dado à RFB para trocar informações no cenário internacional deriva diretamente do povo e em seu interesse deve ser exercido. Esse “povo” certamente inclui os contribuintes, que têm evidente direto de saber como está sendo gerido o poder conferido a todos e quaisquer órgãos públicos. De outro, as garantias e direitos processuais, como refere o capítulo, é “dos” contribuintes, no sentido de serem seus titulares. De que adianta atribuir direitos e garantias se seus titulares não os conhecem?
Mas o que é verdadeiramente intrigante é a motivação da RFB para esconder dos contribuintes seus direitos no âmbito da troca internacional de informações. Se a RFB anda trocando informações tributárias com outros países, o que justificaria a atitude de não revelar aos cidadãos brasileiros seus direitos e garantias nesses procedimentos?
A transparência é um conceito de mão dupla. O aumento do poder fiscalizatório deve se refletir também na respectiva observância dos direitos dos fiscalizados. Como a transparência fiscal internacional envolve concretamente informações relativas aos contribuintes, estes são parte necessariamente interessada na relação entre dois Estados. Se é interesse público combater planejamentos tributários agressivos e à evasão fiscal, também o é o asseguramento da proteção dos direitos e garantias constitucionais dos contribuintes, destinatários finais de toda e qualquer atuação dos órgãos públicos.
Heloisa Estellita e Frederico Silva Bastos são, respectivamente, professora da Fundação Getúlio Vargas (Direito-GV) e advogado da área tributária do escritório Perlman Vidigal Godoy
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