03 de julho de 2014, 06:10h
Por Isaias Coelho
Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito SP. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
Recentemente, um juiz federal em Goiás decidiu, em Mandado de Segurança, que a importação de automóvel para uso pessoal não está sujeita ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).[1] Não é porque eu morra de inveja do feliz possuidor do esportivo, performance car, Camaro Coupe ZL1 amarelo, mas custa a entender por que ele vai deixar de pagar o IPI de que não escapa o comprador, no Brasil, de automóvel de fabricação nacional.
O juiz de Goiás não é andorinha solitária, está muito bem acompanhado. São numerosas as decisões de tribunais federais afastando o IPI na importação de automóvel para uso próprio. Há também muitas decisões do Superior Tribunal Federal no mesmo sentido.[2] Só falta uma súmula vinculante para consagrar a insensatez.
Referidas decisões invocam como base o artigo 153, parágrafo 3º, inciso II, da Constituição, o qual determina que o IPI seja não-cumulativo. Há claramente um mal-entendido sobre o que significa ser o imposto não-cumulativo. Como qualquer bom dicionário esclarecerá, imposto cumulativo é aquele que cumula, que amontoa, que é cobrado “em cascata” nos vários estágios de comercialização.
Pode-se evitar a cumulatividade de duas maneiras. Primeiro, cobrando o imposto de uma só vez (imposto monofásico), como, por exemplo, um imposto de vendas a varejo. A segunda é cobrando o imposto em cada etapa de comercialização (imposto plurifásico), porém, eliminando, em cada etapa, o imposto pago nas etapas anteriores, o que se consegue através do mecanismo de compensação (crédito). Esse segundo método foi adotado na Constituição para eliminar possível cumulatividade do IPI.
Interessante observar que a Constituição não simplesmente dispôs que “O [IPI] será não-cumulativo”, que seria já suficiente para coibir práticas de cumulatividade pelo legislador ordinário. Talvez reconhecendo a escassez de conhecimentos sobre finanças públicas, o constituinte houve por bem tirar quaisquer dúvidas acrescentando uma explicação: “O [IPI] será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.
Com isso, não deveria pairar dúvidas de que a eliminação da cumulação se faz através do mecanismo de crédito. Que só é acionado, como é óbvio, se tiver havido pagamento de imposto na operação anterior. A aplicação do princípio de não-cumulatividade para dispensar do IPI a importação de automóveis escapa a toda lógica. É non sequitur, conclusão que não deriva das premissas.
O que as decisões estão implicando é que o comprador deve pagar IPI se comprar um carro brasileiro, e não o pagará se, ao invés, importá-lo. Chevrolet Camaro sem IPI, Fiat Uno com IPI. Proteção aduaneira ao contrário, punição tributária para a produção no país! Quem imaginaria que a Constituição seria interpretada como lesiva à industria nacional!
Note-se que o mesmo método de eliminação da cumulatividade empregado pelo IPI é utilizado pelo ICMS e pelas contribuições PIS/Pasep e Cofins. Portanto, novas decisões judiciais, se alinhadas com as sentenças supracitadas, têm potencial de desestruturar os principais impostos sobre o consumo.
Para restaurar o bom-senso e a lógica da Constituição — que neste particular está impecável, embora talvez tenha sido infeliz ao acrescentar a explicação mencionada, a qual não logrou fazer-se entender — basta revisitar o sentido de não-cumulatividade ao aplicá-la nas decisões futuras.
Há, entretanto, uma solução superior. O IPI é imposto velho e complexo. Requer uma tabela de incidências (TIPI, ou Tabela do IPI) que só é entendida por especialistas em merceologia. Sua estrutura multifásica gera complexidade desnecessária, restituições laboriosas e contencioso caro e inequitativo. Se a regra de não-cumulatividade não é bem entendida pelos juízes, como a entenderá o comum do povo?
É tempo de simplificar o IPI, (1) reduzindo sua cobertura a poucos produtos e (2) introduzindo a tributação em etapa única em lugar da tributação multifásica. Isso pode ser feito sem perda de receita tributária. Que tal avançarmos na simplificação?
[1] “Importação de Camaro para uso pessoal está livre da incidência do IPI” em Migalhas de 1º de julho de 2014; disponível em http://goo.gl/7q5htI. O inteiro teor da decisão encontra-se em http://goo.gl/OrCSOz.
[2] Ver Recursos Extraordinários 550170, 255090, 255682, 412045 e 501773, disponíveis no sítio do STF.
Isaias Coelho é especialista em política tributária, é doutor em Economia pela University of Rochester e pesquisador sênior do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Escola de Direito de São Paulo (Direito GV).
Revista Consultor Jurídico, 03 de julho de 2014, 06:10h
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por seu comentário!
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.