quinta-feira, 27 de março de 2014

Regras do Rio têxtil não configuram benefício fiscal

Gustavo Brigagão
Fonte: Conjur

Tem início nesta quarta-feira (26/3), no Rio de Janeiro, o III Congresso Internacional de Direito Tributário da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), realizado em homenagem ao meu amigo, sócio, mestre e guru, Professor Condorcet Rezende, que, nas últimas décadas, vem contribuindo enormemente para o aperfeiçoamento e engrandecimento do Direito Tributário.

Já na sua 3ª edição, o evento tem como tema central a Tributação, Internacionalização e Perspectivas. Nele, os mais diversos e relevantes assuntos em matéria tributária serão abordados e debatidos por renomados tributaristas e membros dos Poderes Executivo e Judiciário.

Trata-se de mais uma realização da ABDF, que representa a International Fiscal Association (IFA) no Brasil e, nessa condição, organiza o Congresso anual daquela entidade que ocorrerá em 2017, também na cidade do Rio de Janeiro.

Mas, vamos ao assunto desta coluna.

No início deste mês, o estado de São Paulo ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal, contra dispositivos da Lei estadual do Rio de Janeiro 6.331, de 10 de outubro de 1012, que, supostamente, teriam criado benefícios fiscais relativos à incidência do ICMS não previstos em Convênio celebrado pelos estados — no âmbito do Conselho de Política Fazendária (Confaz). A relatoria do caso foi entregue ao ministro Celso de Mello.

As normas cuja constitucionalidade está sendo questionada e que interessam ao presente artigo são as seguintes[1]:
“Art. 2º O estabelecimento fabricante, de que trata o artigo 1º desta Lei e que por ela optar, deverá recolher o Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual ou Intermunicipal e de Comunicações – ICMS, equivalente a 2,5% (dois e meio por cento) sobre o valor contábil das operações de saídas realizadas no mês de referência, observadas as disposições seguintes.
§ 1º – A utilização da sistemática de apuração a que refere este artigo veda o aproveitamento de qualquer crédito do ICMS.
(…)
§ 4º – Para efeito de cálculo do ICMS a ser recolhido devem (…) consideradas apenas as saídas internas realizadas para contribuintes e as interestaduais de qualquer natureza (…).
(…)
Art. 4º A Nota Fiscal emitida pelo estabelecimento fabricante que recolher o imposto na forma prevista no artigo 2º desta Lei, deve ter o destaque do ICMS calculado de acordo com a alíquota normal, estabelecida em função do destino da mercadoria.”

Verifica-se, em resumo, que a Lei 6.331/12 institui regime especial de tributação (ou sistemática de tributação, como ela própria prefere denominar) que permite aos estabelecimentos fabricantes de produtos têxteis apurar o ICMS devido por meio da aplicação do percentual de 2,5% sobre “o valor contábil” das saídas internas a contribuintes do imposto, bem como das interestaduais de qualquer natureza, sendo vedado o aproveitamento e/ou utilização de quaisquer créditos. Permite-se ao elo seguinte da cadeia a possibilidade de se creditar pelo valor correspondente à incidência da alíquota aplicável (que varia conforme o destino da mercadoria) sobre o valor da operação.

Como se sabe, a Constituição Federal determina que cabe à lei complementar dispor sobre como, mediante deliberação dos estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais são concedidos e revogados (artigo 155, parágrafo segundo, inciso XII, letra g). Esse dispositivo tornou possível a recepção da Lei Complementar 24/75, que criou o Confaz como órgão deliberativo dos estados com competência para celebrar convênios que concedam ou revoguem isenções, reduções de base de cálculo, devoluções, concessões de créditos presumidos, ou quaisquer outros incentivos fiscais ou financeiro-fiscais (artigo 1º).

Vê-se, portanto, que a premissa para que seja necessária a prévia aprovação pelo Confaz é a de que se esteja lidando com a criação ou revogação de benefícios, incentivos ou favores fiscais dos quais resulte redução ou eliminação do respectivo ônus tributário. Ausente essa premissa, desnecessária a prévia aprovação por aquele órgão.

Estamos nessa situação, no caso em exame? Parece-me que não.

Como é notório, o ICMS é imposto não cumulativo, devendo-se compensar o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro estado. Para tanto, assegurou-se ao contribuinte o direito de se creditar do imposto devido nas operações anteriores, devendo o respectivo crédito ser compensado com os débitos relativos às saídas de mercadorias ocorridas em determinado período.

O que o contribuinte recolhe aos cofres públicos, ao final do mencionado período, é o saldo devedor que remanesce dessa compensação. Se os créditos forem superiores aos débitos, nada é recolhido e o saldo credor é transferido para os períodos seguintes.

Essa sistemática, que pressupõe a efetiva utilização dos créditos correspondentes ao que tiver sido recolhido nas operações passadas (inclusive as anteriores à imediatamente anterior), permite que o ICMS onere tão somente o valor que seja correspondente ao que tenha sido agregado em cada elo da cadeia de circulação da mercadoria.

O que fez a lei estadual atacada pela Adin em exame foi simplesmente criar um regime alternativo de pagamento do imposto, em que o saldo devedor acima referido é desde logo atribuído/estimado (em 2,5% sobre o valor das operações realizadas), tornando, nessas circunstâncias, desnecessária a apuração periódica de créditos e débitos. De fato, ao contribuinte que se utilize dessa sistemática de tributação, é vedado o direito de se creditar do imposto pago nas operações anteriores (artigo 4, acima transcrito).

Nessas condições, não há como admitir que esse regime alternativo tenha a natureza de benefício, incentivo ou favor fiscal e que, portanto, a sua criação esteja sujeita à prévia aprovação pelo Confaz.

Na verdade, ele pode levar a situação oposta: a de que, com a sua utilização, o contribuinte recolha valor superior ao que recolheria se utilizasse a sistemática normal de apuração de créditos e débitos. Para tanto, bastaria que o volume de aquisições havidas no período lhe propiciasse volume de créditos que fosse suficiente para, após a respectiva compensação, gerar saldo devedor cujo montante fosse inferior a 2,5% do valor contábil das saídas internas (que corresponde ao montante que, pela sistemática alternativa criada pela lei estadual em exame, deve ser recolhido aos cofres públicos).

Na verdade, o volume exacerbado de créditos pode levar ao seu acúmulo, sem que qualquer valor seja recolhido aos cofres públicos. Isso ocorre com certa frequência nas situações em que mercadorias são importadas ou adquiridas internamente (à alíquota cheia de 18%) e revendidas em operações interestaduais (nesses casos, tributadas a alíquotas reduzidas, que podem chegar a 4%). Nessas circunstâncias, pagar 2,5% do volume de vendas ao Estado significa, indiscutivelmente, ônus, e não bônus tributário. De fato, o Estado estará arrecadando em situação em que nada lhe caberia, se fosse adotado o regime de compensação decorrente da não cumulatividade.

Como chamar de benefício fiscal sistemática alternativa de pagamento que possa, em tese, levar o contribuinte a pagar mais do que recolheria, se adotasse a sistemática normal de apuração do imposto?

Poder-se-ia dizer que o regime alternativo é opcional, pelo que só se socorreria dele quem, com a sua utilização, viesse a pagar menos do que pagaria com a utilização do regime tradicional.

Em primeiro lugar, isso seria irrelevante, porque não se pode considerar benefício fiscal norma que, ainda que somente em tese, possa gerar maior onerosidade tributária.

Em segundo lugar, essa premissa não é verdadeira. De fato, poderá se socorrer do regime quem simplesmente não queira incorrer no ônus de manter o controle acirrado de créditos relativos ao imposto pago na aquisição de mercadorias.

Note-se, aliás, que o mesmo ocorre, na esfera federal, com a opção que é outorgada ao contribuinte para utilizar-se do lucro presumido ou do lucro real, na apuração do imposto sobre a renda por ele devido. Alguns se utilizam do lucro presumido porque, por seu intermédio, se beneficiam da apuração de imposto menor a pagar (se comparada a que resultaria da apuração do lucro real), e outros simplesmente porque não querem enfrentar os encargos inerentes à contabilização dos seus resultados, cuja apuração é complexa e exorbitantemente burocrática. Há redução do respectivo ônus tributário para esses últimos? Claro que não! Pelo menos, não necessariamente, o que é suficiente para que esse regime de tributação não configure benefício fiscal.

Outro exemplo, agora na esfera municipal, é o da legislação do ISS, que permite que as sociedades profissionais recolham valor fixo do imposto ao final de determinados períodos, em contraposição ao que seja correspondente à aplicação da alíquota sobre o respectivo movimento econômico das referidas sociedades.

Também aqui, poder-se-á estar falando de situação em que o contribuinte pagará mais pelo método alternativo do que pagaria se utilizasse a apuração tradicional. Para tanto, bastará que o valor fixo de ISS seja superior ao que resultaria da aplicação da alíquota sobre o movimento econômico.

Aliás, quanto a essa regra de tributação fixa do ISS, que em muito se assemelha à que está sendo examinada neste artigo, é importante notar que o STF teve a oportunidade de examinar se ela teria, ou não, a natureza de isenção heterônoma. Esse exame foi relevante para estabelecer se o dispositivo de lei federal que a previa (Decreto-Lei 406/69, artigo 9, parágrafo terceiro) teria, ou não, sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que expressamente vedava à União instituir isenções de tributos da competência dos estados e municípios (artigo 151, item III).

Por unanimidade de votos, o STF firmou jurisprudência no sentido de que a referida tributação fixa não configura isenção, sequer parcial. Houve, no caso, segundo o tribunal, mera determinação da base de cálculo do ISS, que é elemento pertinente à definição das regras relativas à sua incidência.

Da mesma forma, não há no caso em exame, benefício fiscal que enseje a necessidade de prévia aprovação pelo Confaz.

Nem se diga que a possibilidade de o adquirente da mercadoria submetida a esse regime creditar-se do ICMS destacado nos termos do artigo 4 da referida lei, acima transcrito, configuraria, em si, benefício fiscal pelo fato de o referido crédito ser superior ao que fora recolhido no elo imediatamente anterior da cadeia (montante equivalente a 2,5% do “valor contábil das saídas”).

A determinação do referido artigo 4 de que o destaque do ICMS na nota fiscal emitida pelos estabelecimentos fabricantes de produtos têxteis seja calculado mediante a aplicação da alíquota normal do imposto não configura benefício fiscal, mas sim, procedimento mandatório para que se assegure a observância do princípio da não-cumulatividade.

De fato, pelo regime alternativo em exame, os referidos 2,5% não correspondem à alíquota que incidiria sobre o valor da operação imediatamente anterior (único parâmetro que poderia ser utilizado para a configuração de crédito presumido e, consequentemente, de benefício fiscal), mas ao valor que será efetivamente recolhido pelo fabricante têxtil aos cofres públicos, equivalente, portanto, ao saldo que, na sistemática normal, seria apurado pela compensação de créditos e débitos.

Ora, pelo princípio da não cumulatividade, o contribuinte pertencente à etapa seguinte da cadeia não se credita do “saldo” que é apurado após a compensação de créditos e débitos, mas do valor correspondente ao imposto incidente na operação imediatamente anterior.

Note-se que, se o creditamento na forma prevista no artigo 4 não for possível, haverá cumulatividade de incidências de ICMS sobre o valor dos insumos fornecidos ao fabricante têxtil, na medida em que o imposto correspondente, pago pelos respectivos fornecedores, não terá sido objeto de creditamento por aquele fabricante (por força da vedação constante da lei em exame) e sofrerá nova incidência no momento em que os seus adquirentes venderem as mercadorias produzidas a terceiros.

Portanto, a determinação de que o imposto seja destacado na forma indicada pelo artigo 4 não só não configura benefício fiscal, como é mandatória para a preservação do princípio constitucional da não cumulatividade.

Em suma, não há nas disposições legais em exame a criação de qualquer benefício fiscal que dê ensejo à necessidade de prévia aprovação pelo Confaz. O que há é a permissão da adoção de sistemática alternativa de apuração do imposto da qual pode, inclusive, resultar aumento do valor a ser recolhido.

Não se pode tratar como benefício, sistemáticas de tributação das quais possa resultar malefício fiscal. Seria verdadeira contradição em termos.

[1] Não abordaremos no presente artigo as regras de diferimento constantes da Lei n. 6.331/12.

Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto Advogados, secretário-geral da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro e professor na Fundação Getulio Vargas.

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